Uma breve reflexão em torno de dois tipos de ocorrências preocupantes que ferem a legalidade em matéria de seguros desportivos obrigatórios.
Partilho hoje, consigo, caro leitor, uma breve reflexão em torno de dois tipos de ocorrências preocupantes que ferem a legalidade em matéria de seguros desportivos obrigatórios, a exigirem a máxima atenção de todos, em particular de quem fiscaliza.
Não sendo a regra - para sermos justos, importa vincar que, felizmente, grande parte das entidades privadas prestadoras de serviços desportivos e das federações desportivas dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva cumprem a lei 'à risca' - importa que as situações residuais que ocorrem cessem rapidamente, face aos sérios danos causados. Falo-lhe, caro leitor, da (i) não contratualização do seguro desportivo, quando este é obrigatório; e da (ii) exigência dessa contratualização, quando a mesma não é devida.
Mas vamos por partes. Em primeiro lugar referenciar a lei.
Resulta, desde logo, do artigo 42.º das Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto (LBAFD) a obrigatoriedade de institucionalização de um sistema de seguro obrigatório para (i) os agentes desportivos inscritos nas federações desportivas, para cobrir os particulares riscos a que estão sujeitos os agentes desportivos naquelas inscritos; e (ii) para os praticantes desportivos não federados, no âmbito da prática em infra-estruturas desportivas abertas ao público e em provas ou manifestações desportivas. Por outro lado, decore do artigo 43.º, alínea c) da LBAFD a "existência obrigatória de seguros relativos a acidentes ou doenças decorrentes da prática desportiva", a incidir sobre as "entidades prestadoras de serviços desportivos".
Daqui saltamos para a 'legislação de desenvolvimento', em concreto para o Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro - o diploma legal que "(.) estabelece o regime jurídico do seguro desportivo obrigatório", que, segundo o respectivo artigo 5.º, "(.) cobre os riscos de acidentes pessoais inerentes à respectiva actividade desportiva, nomeadamente os que decorrem dos treinos, das provas desportivas, e respectivas deslocações, dentro e fora do território português.". Destaco aqui dois eixos fundamentais da obrigatoriedade do seguro: (i) Cabe às federações desportivas, às entidades que exploram infra-estruturas abertas ao público e às entidades que organizam provas ou manifestações desportivas celebrar o contrato de seguro; (ii) no âmbito do seguro desportivo de grupo que as federações desportivas instituem, por via de contrato com os seguradores, é obrigatória a adesão individual dos agentes desportivos, a realizar-se no momento em que se inscrevem nas federações desportivas.
Aqui chegados, partamos da lei para as ocorrências que deram mote a esta crónica.
Primeiramente - e há até números publicitados pela ASAE que o atestam - há entidades privadas prestadoras de serviços desportivos que não contratualizam o seguro desportivo, por vezes (mas nem sempre) sem o utente disso se aperceber, colocando um e outro à mercê de coimas (de EUR500 a EUR3000 por cada agente não segurado) e responsabilizando aquelas entidades, em caso de acidente decorrente da actividade desportiva, nos mesmos termos em que responderia o segurador caso o seguro tivesse sido contratado (cf. artigos 20.º e 21.º). Mas mais preocupante do que isso: esta omissão de um dever pode gerar sérios danos para a saúde e segurança dos praticantes. Convém mesmo evitar.
Aqui chegados, primeira conclusão: não se pode ficar pelo menos quando a lei exige o mais.
Em segundo lugar, chegam ecos de situações de violação do artigo 8.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 10/2009, de 12 de Janeiro, que prevê o seguinte: "Ficam isentos da obrigação de aderir ao seguro desportivo de grupo os agentes desportivos que façam prova, mediante certificado emitido por um segurador, de que estão abrangidos por uma apólice que garanta um nível de cobertura igual ou superior ao mínimo legalmente exigido para o seguro desportivo". É a tal segunda ocorrência a que aludi no início deste texto e que se materializa na exigência, por uma determinada federação, de que o agente desportivo, para se inscrever, pague uma taxa única de filiação, que inclui o pagamento do seguro (sem, todavia, se discriminar, contabilisticamente, o seu valor), mesmo quando o agente desportivo invoque e demonstre já ter contratualizado um seguro com (pelo menos) as mesmas coberturas que o seguro federativo de grupo.
Na prática, semelhante conduta implica que o agente desportivo, sob pena de não conseguir inscrever-se (e participar nas competições federadas), pague duplamente. E como isso pode custar/afastar certos praticantes, árbitros, treinadores ou dirigentes, que não se conformam ou não têm capacidade financeira. Tudo à revelia de uma norma de todos conhecida - é uma réplica do antigo artigo 5.º, n.º 4 do Decreto-Lei n.º 146/93, de 26 de Abril - e que se mostra em consonância com o artigo 146.º, n.º 5 do 'Regime Jurídico do Contrato de Seguro' (Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Novembro), que 'reza' o seguinte: "Sendo celebrado um contrato de seguro com carácter facultativo, que não cumpra a obrigação legal ou contenha exclusões contrárias à natureza do seguro obrigatório, não se considera cumprido o dever de cobrir os riscos por via de um seguro obrigatório". Por conseguinte, qualquer federação desportiva cumpre o seu dever de segurar aceitando um outro seguro que proporcione aos segurados coberturas iguais ou superiores às coberturas mínimas fixadas na lei para o seguro desportivo, mas, à inversa, já incumpre a lei se exigir o seguro pago 'em dobro'.
Tempo, agora, para uma segunda conclusão: não se pode exigir mais... quando basta o menos...
Confiamos que a ASAE e o IPDJ não deixarão de cumprir o seu papel. Na defesa de um desporto seguro, designadamente promovido por entidades privadas prestadoras de serviços desportivos e por federações desportivas dotadas do estatuto de utilidade pública desportiva. E, claro está, quer na garantia da legalidade no exercício de poderes públicos federativos, quer na salvaguarda do direito fundamental de acesso ao desporto, constitucionalmente protegido.
14-03-2017 por Alexandre Mestre
Alexandre Mestre é advogado, consultor na Abreu Advogados e também docente de Direito do Desporto. É ex-Secretário de Estado do Desporto e Juventude